Coluna
Trabalho em si e por si

por Flávia Costa

O único legado do trabalho brasileiro é o burnout?

A pergunta pode soar exagerada. Mas, diante do esgotamento que tantas pessoas têm enfrentado em nome de metas, entregas e sobrevivência, não é difícil entender por que ela aparece com tanta frequência.

O trabalho, em si, não adoece. O que adoece é a forma como ele tem sido vivido. Longas jornadas, exigência constante de desempenho, falta de reconhecimento, instabilidade. Quando o esforço passa despercebido e o cuidado não é prioridade, o cansaço deixa de ser exceção e passa a compor o cotidiano.

Ainda assim, seria injusto reduzir o trabalho no Brasil a essa experiência. Apesar das dificuldades, o país tem um histórico profissional que merece ser lembrado. E valorizado.

O Brasil tem contribuições relevantes na ciência, na saúde, na engenharia, na tecnologia. Invenções como o coração artificial, a urna eletrônica, o avião 14-bis. Pesquisas que são referência em áreas como medicina tropical, biotecnologia, agricultura. Profissionais que recebem reconhecimento internacional por atuações técnicas e inovadoras, e que muitas vezes só ganham visibilidade lá fora.

Além disso, há quem insista em fazer o trabalho de forma ética, mesmo quando as condições não favorecem. Servidores públicos que seguem comprometidos, apesar da desvalorização. Profissionais autônomos que exercem suas funções com seriedade, mesmo sem garantias. Empreendedores que enfrentam um sistema complexo e pouco favorável, sem abrir mão da honestidade.

Essas pessoas não aparecem com frequência nas manchetes, mas existem. E fazem diferença.

Enquanto isso, cresce o incentivo a atividades que prometem retorno financeiro imediato, sem qualquer responsabilidade coletiva. Casas de apostas, perfis que promovem apenas consumo, produção de conteúdo adulto como “solução rápida”. São formas de atuação que têm ganhado status de trabalho, e que de fato movimentam dinheiro. Mas é necessário perguntar: se uma atividade beneficia apenas quem a realiza e compromete quem consome, ela pode mesmo ser considerada trabalho?

Essa é uma reflexão que não diz respeito apenas à economia, mas à ética. Porque trabalhar não é só ganhar dinheiro. É também participar de algo que tenha valor para si e para os outros.

Por isso, falar sobre burnout não é só falar sobre saúde mental. É falar sobre o que temos reconhecido como trabalho. Sobre o que temos estimulado e o que temos ignorado. E, principalmente, sobre as formas de atuação que continuam sendo feitas com responsabilidade, mesmo em um cenário que pouco favorece esse caminho.

O trabalho pode continuar sendo uma parte significativa da vida. Mas isso depende do modo como ele é vivido, e do quanto, como sociedade, somos capazes de reconhecer e valorizar quem ainda escolhe fazer com honestidade, mediante a tanto esforço.

Flávia Costa é psicóloga clínica, logoterapeuta em formação e mentora de carreiras. Natural do Rio de Janeiro, tem como missão disseminar a aplicabilidade da Psicologia no dia a dia. @flaviacpsi

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