Matéria de capa

Fé: espiritualidade e religiosidade

Thiago A. Avellar de Aquino

A separação entre fé e razão 

A temática da fé foi, por muito tempo, excluída da ciência, com o intuito de estabelecer um saber racional, fundamentado na observação dos fatos como origem do conhecimento. Nos últimos 400 anos, fé e razão se separaram, e a religiosidade se tornou uma incógnita para a ciência. Algo interessante ocorreu com a constituição da psicologia como ciência: quase todas as grandes teorias e sistemas desse campo, em seus primórdios, abordaram o tema da religiosidade. Algumas, de forma mais crítica, como a psicanálise, que a interpretou como uma neurose obsessiva, de acordo com Freud; outras, no polo oposto, como um fenômeno integrador da personalidade. Nesta última posição, encontram-se autores como William James, Carl Jung e Viktor Frankl. 

 

A Religiosidade como Parte da Cultura Humana 

Indubitavelmente, as religiões são constitutivas da cultura e da sociedade. De acordo com o historiador Mircea Eliade, o surgimento da civilização teria ocorrido a partir de um eixo do espaço sagrado (axis mundi). 

 

O Impacto da Laicidade do Estado no Psiquismo Humano

Assim, o fenômeno da laicidade do Estado é um fato moderno, e, consequentemente, a organização da sociedade excluiu a concepção do sagrado. A questão fundamental agora seria: que impacto isso teve no ser humano? Essa cisão entre sociedade e o campo do sagrado não ocorreu na mesma proporção no psiquismo humano, nem na sua vivência cotidiana. Em sua dimensão especificamente humana, ele continua sendo mais religioso do que tem consciência de ser. Viktor Frankl constatou isso ao analisar a vivência do ser humano em seu inconsciente espiritual, manifestada sobretudo por meio de sonhos com conteúdo religioso, mesmo em pessoas irreligiosas. Para chegar a essa compreensão, Frankl precisou primeiro definir o quem é o ser humano, numa imagem mais próxima daquilo que realmente é uma pessoa.

 

Definindo o Ser Humano: A Perspectiva Frankliana

Mas, afinal, o que não é um ser humano para Frankl? Não é um aparelho psíquico movido por impulsos, nem um ser completamente condicionado, tampouco um ente que age com a intenção final de obter prazer ou poder, muito menos um ser impulsionado para Deus. Em última análise, Frankl não definiu o ser humano nem como anjo, nem como demônio. Antes de tudo, é apenas um ser que decide, ou seja, é livre e responsável, pois é o único ente que possui um caráter de possibilidades. Assim, o ser humano emerge a partir de um ato espiritual — a escolha —, que o faz movimentar seu ser-no-mundo. Portanto, constitui-se por meio da sua atração pelo sentido e pelos valores. Nessa direção, Frankl nos ensina que precisamos de um objeto digno para que surjam determinados fenômenos, tais como a fé, a esperança e o amor. Até mesmo a vontade não depende do querer, mas da medida em que se manifesta no campo perceptivo algo que é valoroso; somente assim emerge uma vontade de realizá-lo. Em outras palavras, o sentido precede a vontade de sentido. Por esse motivo, compreende-se que a consciência (Gewissen) já teria captado, de forma pré-reflexiva, aquilo que é mais valoroso.

 

Fé como Decisão e não como imposição

Da mesma maneira, a fé não é algo que se impõe, mas algo que se decide. A fé no Logos da existência é mais ampla que a fé em Deus ou a fé religiosa. Trata-se de uma sensação de que há um sentido incondicional, o que seria uma característica especificamente humana do homo credens. Somos seres que acreditam em algo que transcende o visível. Não vemos o amor, mas acreditamos na sua existência, vivemos e morremos por ele. Não tocamos a esperança, mas não podemos viver sem ela. Logo, a fé não foge à regra. Não se pode viver sem fé.

 

 

A relação da Fé com a autoconfiança, relações interpessoais e transcendência

Não se pode viver sem fé. Primeiro, a fé em si mesmo. Se o ser humano não tem fé em si mesmo, perde sua autoconfiança e, por conseguinte, não teria forças para dar o primeiro passo ao amanhecer. Ter fé significa que algo está esperando por mim. Sem fé, não podemos empreender nosso trabalho, constituir uma família ou ter filhos. A fé também significa fé em alguém: um professor tem fé no seu aluno, e o terapeuta tem fé de que seu paciente dará uma grande guinada em algum momento do processo terapêutico. Ademais, a fé também está vinculada a algo transcendente ou metafísico, numa perspectiva de relação íntima com um Deus pessoal. Para Frankl, o amor a Deus é a comprovação da existência de Deus para o homem religioso, assim como a sede comprovaria a realidade da água. Na perspectiva de Goethe: “Se os olhos não fossem solares, jamais veríamos o Sol”. Da mesma forma, na fenomenologia de Viktor Frankl, o ser humano acredita espontaneamente em um sentido último por meio de seus “olhos solares”.

 

O Supra-Sentido e a Perspectiva de Frankl

Apesar disso, não se pode conhecer racionalmente aquilo que Frankl denominou de supra-sentido (Übersinn), já que Deus é, e sempre foi, um Deus oculto ou silencioso. Consequentemente, não se pode falar Dele, mas se pode falar com Ele de forma íntima e particular. É interessante notar que, na oração do Pai Nosso, seja em italiano, seja em alemão, Deus é tratado pelo pronome “Tu”, e não de uma maneira formal, como se encontra tradicionalmente em português: “vós” ou “vosso”, que seria o tratamento formal, mais adequado para reis. Vejamos em italiano: Padre nostro che sei nei cieli, sia santificato il tuo nome, venga il tuo regno, sia fatta la tua volontà. Já em alemão, Deus é tratado com o pronome “Dein”, que significa “seu” ou “teu”: Unser Vater im Himmel! Dein Name werde geheiligt. Dein Reich komme. Dein Wille geschehe wie im Himmel so auf Erden. Na leitura frankliana, quando o ser humano dialoga com sua própria consciência em sua intimidade última, ele presentifica e conversa com um “Tu” transcendente que a tradição cultural sempre denominou de Deus. Nesse diálogo, não se sabe se há alguém que acolhe as petições (consciência transcendente) ou se está apenas conversando com o nada (consciência como última instância) ou consigo mesmo. Por isso, crer é uma questão de fé, e a fé é algo da ordem do foro íntimo. Quando esse “Tu” é compartilhado socialmente, ou quando um sentido único se transforma em um valor mais abrangente e se presentifica por meio de ritos específicos, ocorre o fenômeno da religião e da religiosidade.

 

 Psicologia e Religião 

Viktor Frankl descreve de forma fenomenológica o vivido do senso religioso, sem que isso seja uma posição ou imposição da logoterapia, mas apenas um objeto de investigação. Certa vez, em uma aula proferida por Marta Iglesia, ela definiu o significado de supra-sentido para Frankl da seguinte maneira: “é o sentido que dá sentido a todos os outros sentidos”. Achei belíssima essa definição e perguntei a ela onde Frankl teria dito isso.

Na época, ela me respondeu que estaria no livro A Presença Ignorada de Deus, mas, para minha frustração, não encontrei essa frase em livro algum. Possivelmente, Frankl teria dito isso em uma palestra ou conversa pessoal com ela. O mais importante é que essa definição abarca tanto o homem religioso quanto o não-religioso, pois ambos teriam, inequivocamente, um supra-sentido. Além disso, o supra-sentido poderia ser muito íntimo e pessoal, mas também compartilhado por meio dos sistemas religiosos, onde se herda a linguagem simbólica que intermedeia a relação eu-Tu. Mas, dessa forma, Frankl não teria cruzado o limiar entre psicoterapia e religião? Frankl apenas faz as pazes entre a psicologia e a religião, pois seu pensamento alcança todas as manifestações religiosas como fenômenos saudáveis, até que se prove o contrário, reconhecendo também as neuroses religiosas e os aparentes conflitos entre a voz da consciência e os valores religiosos universais. 

 

 

Psicologia da religião e Filosofia da religião 

Destarte, em minha compreensão, o autor aborda a religião em duas perspectivas: (1) uma psicologia da religião e (2) uma filosofia da religião. Quando fala do ser humano e sua sede de Deus, mesmo inconsciente, está falando de uma psicologia da religião, em geral no contexto terapêutico. Já quando aborda a questão de Deus, compreende-se seu pensamento filosófico, naquela coluna que discorre sobre o sentido da vida e advoga também a vontade de sentido último.

 

 

Oriente e Ocidente: Um Diálogo Universal

Sobre a aparente dicotomia Ocidente versus Oriente, Frankl teria confessado que, quando apresentava suas ideias no Oriente, achavam que seu pensamento era muito familiar naquela cultura, o que sugere que encontrou uma linguagem acerca do sentido que seria universalizável. De fato, na cultura japonesa há um conceito muito próximo à logoterapia, chamado Ikigai (生き甲斐), que significa “razão de viver”. 生き significa “vida”, enquanto 甲斐 quer dizer “vale a pena”. É interessante notar que Frankl nunca diz que a fonte do sentido é Deus, mas a vida. Em seus escritos, encontra-se: a vida chama, a vida sempre questiona e interpela o ser humano.

Assim, ele discorre sobre o sentido na vida, que inclui todos, crentes e não crentes, ocidentais e orientais. Mais uma vez, o supra-sentido abarca todos os sentidos, assim como o espaço inequivocamente abarca a Terra.

 

Religiosidade de Frankl

Agora, cabe uma última observação a respeito da religiosidade de Frankl. Ele sempre foi judeu e permaneceu fiel à sua fé até o fim. Já idoso, com mais de oitenta anos, durante uma visita a Israel com David Gutman, recebeu o segundo Bar Mitzvah, confirmando a fé que herdou de seus pais. Em segundas núpcias, casou-se com Eleonore, que era católica, o que demonstra sua abertura inter-religiosa.

Frankl expressou seu desejo de ser enterrado na ala judaica do cemitério de Viena, ao lado do monumento erguido em memória de seus pais, mesmo sabendo que sua esposa não poderia ser enterrada ao seu lado após sua morte, devido às restrições impostas pelas tradições religiosas, que reservam espaços distintos para cada fé.

 

 

Humildade, respeito e reconexão

Qual a lição que Frankl nos deixou? No mundo atual, marcado por tantas divergências e conflitos de ordem religiosa, ele oferece a chave para abrir a porta da paz: o caminho da humildade. Segundo Frankl, só há uma verdade, mas como podemos saber quem a detém? Ela pode estar tanto comigo quanto com o outro. Portanto, é necessário, antes de tudo, reconectar-nos com aqueles que pensam de maneira diferente e respeitar suas escolhas, para, assim, reencontrarmos a verdadeira ligação com o Supra-Ser Transcendente. Nas palavras de um prisioneiro desconhecido na Sibéria: “Busquei a Deus e Ele me evitou, busquei minha alma e não a encontrei, busquei meu irmão e encontrei todas as três coisas.”