Coluna
Saudavelmente

por Raisa Mariz

Entre o trabalho e a maternidade: remendando os laços de sentido

Você já vivenciou aquele dia bem corrido, em que tudo acontece e você tem a sensação de que não tem tempo pra nada? Pois foi num desses dias que encontrei a Sílvia, uma querida amiga que há meses não encontrava. De início pensei: Nossa que legal, vamos atualizar os papos! Depois meu lado racional já me alertou: “querida, você não tem tempo agora. Desvia e segue a vida.” Ela ainda não tinha me visto e dava tempo de sair de fininho. Mas, repensei e lembrei da última vez que falei com a Sílvia. Poxa, ela tinha escutado aquela promessa do “vamos combinar” e “qualquer coisa eu te ligo”. E nunca combinamos. Olhei pro relógio e foi ele quem ouviu dessa vez: qualquer coisa eu te ligo. E chamei:

– Silvia!!!

– Não acredito! Mulher, que alegria! Tá de folga hoje?

– Tô nada! Estava de passagem e te vi aqui… decidi dar um oi. E aí, como estão as coisas?

– Ai, amiga. Tem tempo? E antes que eu a respondesse, desatou: – Me sinto cansada. Assim, tá tudo bem, tô trabalhando, as crianças estão ótimas, todo mundo com saúde. Mas sinto que não tô fazendo muita coisa. Sei lá…saí mais cedo do trabalho hoje e decidi vir aqui porque era um dos lugares que eu mais gostava antes de não ter tempo pra nada. Eu saio cedo de casa, trabalho fora, mas vou feliz pra caramba. Porque lá sei o que me chama, o que posso fazer, o que tô deixando nesse mundo, sabe? Às vezes estressa, é verdade, mas acho que todo trabalho é assim, né? Então vou levando, às vezes pelos amigos que tenho, às vezes pelo café, outras pelos elogios dochefe, da equipe…ah, tem a parte financeira também…mas olha, eu não me vejo fazendo outra coisa! Aquilo me dá vontade de fazer mais…mas aí que tá, não consigo. Porque aí logo vem as obrigações do meu outro trabalho, aquele que você conhece muito bem porque também é mãe. Amiga, a maternidade me consome. Eu sei, sou um monstro falando isso, mas deixa eu explicar…

– Não precisa. Tô entendendo.

 

Nesse instante a Sílvia embargou a voz e percebi que estava com os olhos marejados. Até que as lágrimas desceram junto às palavras: Me sinto ingrata. Amo minhas crianças, mas é estranho estar no trabalho e pensar em casa. E chegar em casa e pensar no trabalho. E em casa às vezes também parece trabalho.

São muitos questionamentos…ow amiga, você só queria ouvir um “tá tudo bem”, né? Desculpa! Acho que estava entalado!

 

Eu a abracei e nesse abraço choramos. Era algo que precisávamos mesmo. Que bom que decidi ignorar o relógio. Quanto no dia a dia temos que ignorar, sem fugir da realidade, mas pra perceber o que vale ser vivido? Sei que eu não podia resolver o conflito existencial da Silvia, mas enquanto amiga estava ali para amparar e sofrer com ela o dilema de uma mãe, que, assim como tantas, se culpam pela vida fora do ninho.

– Silvia, eu entendo suas culpas. Mas preciso lhe dizer da mãe incrível que você é, e da excelente profissional que você é. Vocês são a mesma pessoa. E mais uma coisa que talvez você não saiba: és uma costureira de mão cheia! Você não percebe, mas todos os dias você pega suas linhas e agulhas e sai remendando os laços de sentido da sua vida. Tem dias que os pontos saem fácil e perfeitos. Mas haverá dias em que você precisará reforçar alguns pontos. A você, cabe descobrir novos pontos e vivê-los da melhor maneira que você puder. E tenho certeza que seus filhos e seus colegas de trabalho sabem do seu amor por ambos.

– Amiga, muito obrigada por isso. Me sinto muitas vezes incompleta e buscando essa perfeição, por isso acho que sofro tanto. Mas vir aqui, lhe encontrar e te ouvir me fez perceber o quanto sou feliz nos meus dois pólos: o trabalho e a maternidade. Me sinto útil ao desenvolver minha função no escritório, ao mesmo tempo em que amo ser aquela mãe que lê histórias, que bagunça junto, que inventa coisa pra se cansar mais ainda, haha. Mas que, acima de tudo, ama. Eu não preciso escolher um só lugar. Preciso só reorganizar meu “ateliê de costura”.

 

E foi com essas palavras que nos despedimos. Ignorar o tempo não faz com que ele congele. E foi preciso seguir para nossos afazeres. Combinamos, agora de verdade, dias fixos para nos vermos mais e aproveitarmos nossa amizade. Silvia nem sabe, mas ela me reergueu.

 

E você, já abraçou uma Silvia hoje?

 

*Dedico este texto às minhas luzes de sentido, minhas filhas amadas que me trazem os encantos e desafios da maternidade, e por isso me inspiram a ser quem eu posso ser. Amo meu trabalho, mas sem ele eu poderia viver, talvez de outra forma. Mas sem elas, definitivamente eu não viveria. Amo vocês.

Raisa Mariz é psicóloga clínica e professora universitária. Mestre em saúde pública, especialista em logoterapia e saúde da família e pesquisadora nas áreas da infância e família. Natural de Campina Grande/PB, ama essa terra e todas as suas raizes nordestinas. Acredita na arte e educação como potencializadores de sentido de vida. O seu lugar é onde tem música, pôr-do-sol, familia e amigos.

Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião da Revista Propósito