Coluna
Diário do Sentido

por Luiz Guedes

Autenticidade e o caos: o fio que tece o humano

Ser autêntico é uma jornada que pulsa entre a ordem e o caos. Na psicologia, especialmente em abordagens existenciais como a de Viktor Frankl e Rollo May, a autenticidade é diretamente associada ao encontro com quem realmente somos, um processo que não acontece sem enfrentarmos os desafios e as incertezas que nos cercam.

 

Esses enfrentamentos não são necessários por uma ideia abstrata de se forjar a partir de sofrimentos evitáveis, pelo contrário, os sofrimentos evitáveis podem e devem ser evitáveis. A ideia seria entender que nossa liberdade é para responder a tais enfrentamentos e que são nessas decisões que vamos encontrando a nós mesmos a cada nova esquina instável da vida.

 

Mas quem somos nós, afinal, sem o caos que nos desestabiliza e nos convida a mudar para transformar? O caos, ao contrário do que culturalmente aprendemos a evitar, não é o vilão. Ele é o espaço onde as possibilidades brotam, o terreno fértil da criatividade humana e do confronto necessário.

 

Pense em como grandes histórias, sejam mitológicas ou contemporâneas, usam o momento de ruptura para despertar a consciência dos personagens que as vivenciam. É ali, no desequilíbrio, que surge a chance de algo genuíno se manifestar. Assim somos nós: a autenticidade só emerge quando temos a coragem de nos perder — e depois nos encontrar.

 

Na prática, isso significa que autenticidade não é sinônimo de estabilidade ou de uma versão idealizada de si. Ela é movimento, é um “ser em constante vir a ser”. Movimento que gera movimento. Em um mundo que nos empurra para encaixes e moldes, ser autêntico muitas vezes requer entrar em conflito com nossas próprias ideias pré- concebidas e permitir que o desconforto nos reoriente.

 

O caos não é antítese da ordem, mas seu complemento; um equilíbrio dinâmico que não permite estagnação. E aqui entra uma das maiores dificuldades do processo: reconhecer que autenticidade implica vulnerabilidade. Aceitar o caos como parte do humano exige que olhemos de frente para aquilo que negamos ou tememos, como Zuko em Avatar: The Last Airbender, que só encontra a si mesmo quando enfrenta seu passado, seus traumas e seus ideais distorcidos pelo externo sobre quem ele deveria ser.

 

Nesse sentido, a autenticidade não é um dom inato, mas uma construção ativa que demanda coragem e, paradoxalmente, aceitação de nossas limitações para ter acesso às nossas potências. A vida é marcada por impermanência e incerteza. No entanto, ao buscar autenticidade, muitas vezes tentamos cristalizar uma ideia fixa de quem somos. Queremos respostas definitivas, uma identidade sólida e inabalável.

 

Mas talvez seja hora de parar de tentar ser linear o tempo todo e abraçar as contradições que nos compõem. É impossível não notar que os momentos mais autênticos do ser humano geralmente emergem quando deixam de tentar “ser perfeitos” e começam a aceitar que o caos faz parte de quem são. O caos como oportunidade de afinar a consciência, buscar e realizar sentidos. Autenticidade em uma ordem estabelecida partindo do caos nos fala muito sobre percepção de quem somos e quem podemos vir a ser.

 

No fim, não é apenas sobre ser fiel a si mesmo, mas sobre ser fiel ao processo. Reconhecer que somos fragmentos em constante composição e que, assim como a arte, não existimos no vácuo: somos modificados pelas relações, pelo contexto, pelo mundo em que estamos inseridos e pelas decisões que tomamos no pouco que está no nosso controle.

 

E é nesse jogo entre caos e construção ordenada que podemos, finalmente, nos aproximar do que significa ser humano e autêntico.

Luiz Guedes é psicólogo logoterapeuta, especialista em Logoterapia e Psicologia Fenomenológica-Existencial, mestre em Psicologia e Saúde pela UFCSPA, gosta de nerdice e acredita que a construção humana e social passa por consciência de classe. Também adora dogs de roupinha e so quer sossego na vida. @diariodosentido

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