Coluna
Universo feminino

por Priscilla Vogt

A Mulher que Virou Produto

Existe uma lógica silenciosa atravessando a vida das mulheres modernas: a de que não basta existir — é preciso parecer existir. Não basta sentir — é preciso mostrar. Não basta viver — é preciso performar a própria vida como se estivéssemos sempre sob algum tipo de avaliação invisível. Aos poucos, quase sem perceber, muitas de nós fomos nos transformando menos em pessoas e mais em vitrines ambulantes: colecionando versões bem-editadas, estrategicamente compostas, cuidadosamente escolhidas para caber nas expectativas de um mundo que sempre exige mais.

Zygmunt Bauman, em Vidas para Consumo, descreve o fenômeno da sociedade que transforma tudo — inclusive as pessoas — em mercadorias. E quando revisito esse conceito, penso imediatamente na mulher contemporânea. Somos treinadas a nos apresentar como produtos desejáveis: belas, eficientes, resilientes, interessantes, competentes e emocionalmente estáveis. Como se nossa existência dependesse da nossa capacidade de “vender bem” a própria imagem para sermos aceitas, admiradas ou simplesmente lembradas.

É nesse cenário que a identidade começa a escorregar pelos dedos. A mulher passa a viver entre dois mundos: o que sente e o que mostra. O que deseja e o que seria bem-visto. O que é e o que rende aplausos. A vida íntima vai se tornando cada vez mais pequena, enquanto a vitrine — essa versão editável e publicável — se agiganta. E quanto mais investimos no brilho do vidro, mais corremos o risco de desaparecer atrás dele. O produto ganha destaque; a pessoa perde textura.

Bauman afirmaria que esse é o drama líquido do nosso tempo: uma vida moldada não pela essência, mas pela atratividade. Relações escolhidas pela conveniência. Corpos tratados como projetos contínuos de investimento. Histórias pessoais reescritas como portfólios para inspirar, impressionar ou entreter. É o desmonte silencioso da autenticidade em nome da relevância.

Mas há sempre um ponto de virada. Ele começa no instante em que a mulher se atreve a fazer a pergunta que a vitrine não sustenta: Quem eu sou quando ninguém me olha?

Essa pergunta rompe o vidro.

Ela desarma a performance.

Ela devolve profundidade.

Porque a resposta não mora nas fotos bem iluminadas, nos discursos ensaiados ou na compostura que nos ensinamos a ter. Ela mora nos bastidores — nos silêncios que evitamos, nos desejos que escondemos, nas dores que fingimos não existir, nos sonhos que ainda não tiveram coragem de nascer.

No fundo, nenhuma de nós nasceu para ser produto.

Não somos mercadorias em prateleiras emocionais.

Não somos versões otimizadas do que esperam que sejamos.

Somos presença.

Somos processo.

Somos caminho.

Somos mulheres que, quando voltam a si mesmas, reencontram algo que vitrine nenhuma consegue revelar: a liberdade de existir sem precisar ser “vendável”.

É ajudar a mulher a lembrar que ela não é um produto em prateleira, mas um ser em construção. Que a vitrine pode até existir, mas não pode ser a casa. E que o valor não está no brilho do vidro, mas na verdade que existe atrás dele.

Priscila Vogt é psicóloga clínica especialista em Logoterapia. Natural de Curitiba/PR, atualmente reside em Florianópolis, é amante de praia, sol e natureza. Se apaixonou por ajudar mulheres a encontrarem seu lugar no mundo e resgatarem sua autoconfiança. Hoje atua no On Line, mas também tem consultório na Ilha da Magia. @psipriscillavogt

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