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É possível o sentido do trabalho no neoliberalismo?

Lorena Bandeira 

Foi numa viagem a São Paulo em que me deparei com uma estação de metrô lotada. Pelo horário, isso indicaria que a maioria delas poderia estar voltando de um dia de trabalho, talvez cansadas, algumas esgotadas, algumas felizes e outras nem um pouco animadas ou felizes. Algumas (talvez a maioria) poderiam estar pensando como sair daquela situação exaustiva de trabalhar tanto, ser mal remunerado e ter a sensação de que nunca iriam alcançar o tal sonhado sucesso. Toda essa reflexão poderia durar entre 2 a 3 horas, tempo de deslocamento médio para ela.

 

Nas sextas, esses pensamentos eram suprimidos pela vontade de encontrar os amigos num barzinho barato, tomar uma cerveja gelada e esquecer, mesmo que por uma noite, todas as frustrações vivenciadas.

No sábado, ainda de ressaca, rolará o feed de seu Instagram vendo colegas que estão correndo as 5h da manhã, lendo livros ou produzindo algo mais. Daí vem o sentimento de não estar fazendo o suficiente e que, por isso, sua vida não está deslanchando como essas supostas pessoas do Instagram. A culpa por ter aproveitado uma sexta começa a corroer e o sentimento de que se produzir mais, essa pessoa será recompensada.

 

Esse ciclo é presente mentalmente e provoca crises existenciais com certa frequência aos trabalhadores do nosso país. Será que é possível, nesse contexto neoliberal, encontrar espaço para viver com sentido e encontrá-lo no trabalho?

 

É bem verdade que é difícil encontrar um sentido no trabalho quando você não consegue pagar as contas básicas da sua casa e essa é a realidade de 63% dos brasileiros, dados de pesquisa realizada pela On The Go, encomendada pelas empresas Zetra e SalaryFits.

Outro dado que pode nos ajudar a pensar sobre a dificuldade de encontrar um sentido no trabalho é o fato de que 10% da população brasileira tiveram renda 14,4 vezes superior à dos 40% da população, segundo dados do IBGE. A discrepância mostra que 10% da população tem renda média de R$ 7.580, enquanto os que fazem parte dos 40% dos brasileiros tem renda média de R$ 527. Se olharmos para o 1% da população mais rica, que tem renda mensal de R$ 20.664, a diferença para os 40% de menor renda chega a 39,2 vezes a mais.

Não se trata aqui de dizer que o dinheiro por si só traz sentido ao trabalho, mas ele te permite a aquisição de itens básicos da sua vida e te possibilitam pensar em outros aspectos. O que quero dizer aqui é que, provavelmente, para os 63% da população que não consegue pagar contas básicas na sua casa, pensar sobre sentido do trabalho talvez não seja prioridade porque ela estará mais preocupada em pensar sobre como pagar sua contas e dar comida a si e seus dependentes (se os tiver).

Dados do Ministério da Previdência Social apontam que o ano de 2023 culminou em quase 290 mil benefícios concedidos por incapacidade devido a transtornos mentais e comportamentais. Isso representa um aumento de 40% de afastamentos e aposentadorias em função de sofrimentos psicológicos.

De forma simplista, podemos analisar que essas pessoas podem estar experienciando falta de sentido em suas vidas e em seus trabalhos e, por isso, adoecem. Eu concordo em parte, mas quando analisamos porque essas pessoas podem estar tendo dificuldade de encontrar um sentido na vida é justamente pela necessidade de alta produtividade, desigualdades sociais, as próprias condições de trabalho e cobrança social e tudo isso está relacionado com o neoliberalismo.

Em busca de autonomia para ser feliz

Segundo dados do Ministério do Trabalho, no último ano foram mais de 7 milhões de pessoas que pediram demissão de seus cargos. Esse dado acompanha a mudança social que ocorreu após a pandemia, sobretudo no sentido de repensar a relação com o trabalho. Em pesquisa realizada pela consultoria de recrutamento Robert Half em parceria com a escola de inteligência emocional The School of Life Brasil, 44 % das pessoas que abandonam seus cargos alegam não estarem mais felizes ou reconhecidas em suas ocupações.

Muitas delas assumem empreendimentos próprios sob o discurso de que serão seus próprios chefes e terem mais liberdade para organizar seus horários e suas remunerações. A realidade é que, segundo o Mapa das Empresas do Governo Federal, a cada minuto 4 empresas fecham no Brasil.

Em pesquisa realizada pela Endeavor Brasil, foi constatado que 94% dos empreendedores brasileiros já sofreram com algum sofrimento psíquico, com a ansiedade sendo a mais frequente (85,6%), seguida por burnout (37%), depressão (21%) e ataques de pânico (22%).

 

 

Dados do Ministério da Previdência Social apontam que o ano de 2023 culminou em quase 290 mil benefícios concedidos por incapacidade devido a transtornos mentais e comportamentais. Isso representa um aumento de 40% de afastamentos e aposentadorias em função de sofrimentos psicológicos.

Vivendo na contramão

Não é difícil encontrar exemplos de pessoas que cansam de viver em função de produtividade e vão em busca de uma vida mais leve. Sejam pessoas que decidem viver de forma autossuficiente, consumindo apenas aquilo que é produzido, numa espécie de eremita contemporâneo, sejam aqueles que buscam uma vida combinada de trabalho e viagem, vivendo como nômades digitais (número que já chega a 35 milhões ao redor do mundo).

Essas pessoas que buscam viver na contramão assumem um modelo de vida mais simples, minimalista e contemplativo. Valorizam mais o contato com a natureza, quebrando o paradigma de viver com velocidade e em busca de produtividade.

É possível, então, um sentido num mundo neoliberal?

O que quero refletir é que o neoliberalismo dificulta exatamente a possibilidade de encontrar sentido. Acredito sim, que seja possível encontrar um sentido de trabalho apesar do neoliberalismo, mas infelizmente essa realidade só será possível para alguns e não para todos. E se você, leitor, está pensando que esses alguns alcançam por mérito, talvez não tenha lido a matéria adequadamente.

Esses “alguns” são os privilegiados que conseguem ter a possibilidade de pensar sobre o sentido, mas que precisam, também, atuar como mediadores para que a realidade social de outras pessoas possa mudar e assim, elas também possam pensar sobre o sentido.

Pensando de modo coletivo podemos repensar nossa forma de existir e coexistir nesse mundo, encontrando sentido de diversas formas, não só no trabalho formal, mas em atos de caridade, voluntariado e suporte aos demais.